A história de Itaúna, cidade do Centro-Oeste de Minas Gerais, é marcada por profundas raízes coloniais e encontra em suas origens figuras que exerceram papéis determinantes na formação espiritual, social e cultural da localidade.
Entre elas destaca-se o Padre José Teixeira de Camargo, o primeiro sacerdote a celebrar missa no então arraial de Sant’Ana do São João Acima, marco inicial da vida religiosa e comunitária que viria a moldar o futuro município de Itaúna, Minas Gerais.
José Teixeira de Camargo nasceu em 12 de maio de 1740, na cidade de Congonhas do Campo/MG, filho do casal Tomás Teixeira e Ana Maria Cardoso de Camargo.
Por parte materna, trazia uma linhagem ilustre, típica das famílias que participaram da formação do interior paulista e mineiro: era neto de João Lopes de Camargo e Isabel Cardoso de Almeida, e tetraneto de José Ortiz de Camargo e Leonor Domingues Carvoeiro — nomes vinculados à expansão bandeirante e à ocupação do sertão do Brasil colônia.
José Teixeira de Camargo, portanto, cresceu em meio à tradição da religiosidade e do prestígio familiar, o que lhe garantiu condições de buscar o sacerdócio. No entanto, a entrada nos quadros do clero na segunda metade do século XVIII exigia muito mais do que vocação. Na época em que este jovem padre ingressou no seminário, a Igreja Católica vivia sob forte conservadorismo. Ser ordenado sacerdote implicava enfrentar um rígido processo de comprovações.
O primeiro desafio era a prova de “pureza de sangue”, exigência que visava atestar que o candidato “não era descendente de penitenciado pelo Santo Ofício (inquisição), nem de judeu, mouro, mourisco, preto, mulato ou qualquer outra nação infecta.”
Vencida essa barreira racial e religiosa — processo comum àquele tempo —, seguia-se a avaliação dos costumes morais e da reputação “ilibada”, feita por testemunhas em segredo, sob juramento. Era necessário demonstrar uma vida “sem manchas”, íntegra e respeitável, tanto do ponto de vista pessoal quanto familiar.
Por fim, o terceiro requisito consistia em doar um patrimônio à diocese, condição indispensável à ordenação. Era exigido que esse patrimônio fosse legítimo e desvinculado de bens de raiz ou escravizados. No caso de José, foram seus pais que realizaram a doação de parte da fazenda adquirida pela família, o que permitiu que o processo fosse concluído.
Àquela altura, a cidade de Mariana, sede do bispado, passava por um período de transição, sem um bispo titular, sendo então administrada pelo Cabido Eclesiástico. Nesse contexto, coube ao influente cônego Ignácio Corrêa de Sá, também comissário do Santo Ofício e juiz das Justificações de Genere, conduzir os trâmites e nomeações eclesiásticas.
Para julgar o processo de moralidade e origem, “de moribus”, de José Teixeira, nomeou-se o padre Jorge de Abreu Castelo Branco, bacharel pela Universidade de Coimbra e vigário da Freguesia de Pitangui e “pai da Joaquina do Pompéu, ordenado viúvo”.
Com o processo aprovado, o próprio padre Jorge de Abreu nomeou, em 4 de fevereiro de 1766, José Teixeira de Camargo como capelão da Capela de Sant’Ana do São João Acima, então filial da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Pitangui. Tratava-se da primeira nomeação formal de um sacerdote para atuar de forma permanente no arraial, localizado em ponto estratégico de passagem de tropas e de expansão da ocupação do sertão, já densamente povoado e carente de assistência espiritual.
Aos 23 dias de abril, José Teixeira Camargo, ainda na condição de diácono, formalizou um requerimento ao Juiz das Dispensas em Mariana, explicando as razões para sua ordenação imediata. Alegava que a capela de Sant’Ana já estava concluída há seis meses, mas seguia sem sacerdote, e que havia grande carência de clérigos em toda a região do bispado de Mariana, não apenas para as terras povoadas, mas para aquelas que vinham sendo recentemente descobertas e colonizadas. Seu apelo foi atendido.
Ainda no mesmo ano de 1766, Padre José Teixeira foi finalmente ordenado sacerdote e assumiu a capela de Sant’Ana, sendo o primeiro padre a celebrar oficialmente uma missa naquele espaço sagrado. Com esse ato inaugural, inaugurava-se também uma nova etapa no processo de enraizamento da fé católica e da vida comunitária no arraial, que com o tempo viria a se tornar o município de Itaúna.
Por mais de dois séculos, a memória de Padre José Teixeira de Camargo permaneceu viva sobretudo em registros históricos e nos relatos da tradição oral local. Entretanto, seu nome demorou a ser reconhecido oficialmente nos espaços públicos da cidade que ajudou a fundar.
Em 4 de setembro de 1968, foi promulgada a Lei Municipal nº 908, que deu à praça localizada em torno da Igreja do Rosário o nome de “Praça Manoel Pinto Moreira”. Conforme reconheceu posteriormente Guaracy de Castro Nogueira, o nome homenageado nunca existiu, sendo fruto de um equívoco administrativo que ele próprio admitiu: “Este cidadão nunca existiu e eu sou o culpado, até que mude a denominação. Espero que tenha o nome do primeiro sacerdote que nela celebrou a primeira missa.”
A correção desse erro histórico foi finalmente realizada em 23 de março de 2004, trinta e seis anos após a nomeação anterior, com a promulgação da Lei Municipal nº 3.861, que modificou oficialmente o nome da praça para “Praça Pe. José Teixeira de Camargo”, reconhecendo de forma institucional o papel daquele que foi o primeiro sacerdote a atuar oficialmente em Itaúna.
A nova lei, além de revogar a anterior, determinou à Prefeitura a colocação de placas indicativas e a comunicação às instituições públicas e concessionárias de serviços essenciais sobre a alteração do logradouro.
A trajetória de Padre José Teixeira de Camargo representa um elo vital entre a expansão da fé católica, os processos de ocupação do sertão mineiro e a consolidação das comunidades locais durante o período colonial. Ao ser o primeiro a celebrar missa na capela de Sant’Ana, ele não apenas cumpriu um rito litúrgico inaugural, mas fundou espiritualmente um povoado, ajudando a definir suas identidades, valores e referências religiosas.
Mais do que o primeiro a erguer a hóstia consagrada no altar de Sant’Ana do São João Acima, certamente, foi também uma figura que encarnou os ideais da Igreja colonial, o peso das tradições familiares e o impulso civilizador que moldou o interior de Minas Gerais. Seu percurso — da rígida formação eclesiástica à atuação pastoral em terras remotas — revela os bastidores de um tempo em que o sacerdócio representava mais do que vocação: era um caminho árduo de legitimação social, étnica e econômica.
Recuperar sua história é mais do que prestar homenagem: é restaurar a memória de um dos pilares invisíveis que sustentaram a fé, a esperança e a formação comunitária do que viria a ser Itaúna. A posterior reparação toponímica feita em 2004 sela um compromisso da cidade de Itaúna com sua própria história. Dar nome a um espaço público é também reconhecer a relevância de um passado que não pode ser esquecido.
E nesse caso, o passado do arraial de Sant’Ana do Rio São João Acima também passa necessariamente pela figura de seu primeiro padre, cuja presença — hoje gravada no nome da praça — ecoa como sinal de pertencimento e permanência.
Que seu nome seja enfim reconhecido onde deve: na “Praça Pe. José Teixeira de Camargo” que hoje ocupa o mesmo chão em que ele certamente, pela primeira vez, levantou a voz para dizer “Dominus vobiscum” no coração do povoado de Sant’Ana.
Referências:
Pesquisa e elaboração: Charles Aquino
CMI - CÂMARA MUNICPAL DE ITAÚNA. Lei nº 908, de 4 de setembro de 1968. Dá denominação à praça situada em volta da Igreja Nossa Senhora do Rosário como “Praça Manoel Pinto Moreira”, Itaúna, MG, 4 set. 1968. Disponível em: https://sapl.itauna.mg.leg.br/norma/8986
CMI – CÂMARA MUNICIPAL DE ITAÚNA. Lei nº 3.861, de 23 de março de 2004. Modifica denominação de logradouro público para “Praça Pe. José Teixeira de Camargo”, Itaúna, MG, 23 mar. 2004. Disponível em: https://sapl.itauna.mg.leg.br/norma/9841
Fonte Impressa: Itaúna em Detalhes – Pesquisa Guaracy de Castro Nogueira - Enciclopédia Ilustrada de Pesquisa. Edição: Jornal Folha do Povo, 2003, p. 4, 6-7,
Ilustração criada com IA, inspirada no conteúdo do texto.
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